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Não foi recentemente, nem mesmo nos últimos couple of years; já se passaram vários anos, a considerável distância temporal. Em uma sucessão de períodos, estava habitando em um local distante da minha família, imbuído na busca de novas fronteiras pessoais e profissionais. Uma transição de carreira estava em jogo, uma ânsia por mudar o círculo de amizades e a própria trajetória de vida. Não é que o que eu estava fazendo ou as pessoas com quem eu me relacionava fossem insatisfatórias, pelo contrário, era mais uma percepção de insatisfação interna. Era uma espécie de convicção interna que me impelia a superar barreiras que nem sequer compreendia que existiam.

Assim chegamos a 2006. Minha morada estava na Capital do Brasil, envolvido até o pescoço em atividades laborais de natureza completamente distinta do meu campo de estudo e preparação. Mesmo assim, estava lá, com a resolução firme de triunfar, mesmo que isso implicasse em deixar uma parte considerável para trás.

Mas, numa fatídica noite, quando saía do supermercado, deparei-me com uma cena inquietante. Um indivíduo, aparentando ter mais ou menos a minha idade, ou talvez até mais jovem, estava sentado no chão, fuçando em um monte de lixo. Ele encontrou um pedaço de carne, o qual levou à boca com uma mordida. Naquele momento, foi como se algo dentro de mim se partisse, embora eu já tivesse sido testemunha da fome, essa experiência me atingiu com um impacto visceral. Voltei para casa naquela noite com uma resolução clara: retornar a São Paulo, revitalizar minha carreira e aplicar as lições aprendidas durante esse período de “afastamento” para me transformar em alguém diferente do que fui.

Os anos seguiram seu curso, e ali estava eu, totalmente engajado em remodelar a minha trajetória, abraçando os “novos erros”. Até que chegou aquele dia, uma segunda-feira pela manhã. Enquanto me preparava para sair, percebi algo perturbador na calçada: era o meu próprio lixo, revirado por um homem idoso. Ele não lembrava em nada o meu pai, nem qualquer figura paternal que eu tivesse conhecido. No entanto, de alguma maneira, essa experiência me fez compreender que minha oportunidade de derramar lágrimas já se esgotara. Em vez disso, senti uma angústia profunda ao observar aquele senhor consumir as sobras de comida que eu havia descartado.

Saltamos para 2015. A fome não era mais um fenômeno isolado; ela havia se espalhado por diversos cantos. Apesar disso, muitos pareciam optar por relegar esse monstro à obscuridade, como se ele não estivesse a uma distância alarmantemente próxima. O que alimentou esse monstro foi a completa falta de planejamento, organização, foco e um senso elementar de responsabilidade. O monstro cresceu, expandiu suas garras.

Chegamos, por fim, a 2021. Mais uma vez, a fome emerge, não como um evento isolado, mas como parte de uma complexa teia que envolve uma economia negligenciada e um desalinhamento gritante com os princípios científicos fundamentais da ciência política.

Hoje, meus olhos se depararam com mais um indivíduo revirando o lixo em busca de sustento. Uma rápida visita a um site revela uma realidade semelhante, uma realidade que não é isolada, assim como nunca foi. A dimensão dessa problemática está em constante expansão; nos mercados, os preços sobem e a sensação persiste de que, independentemente dos meus esforços para aprimorar minhas habilidades, ainda serei um espectador do sofrimento alheio.

Minha resposta é redobrar os esforços, me envolver em trabalho voluntário e estabelecer conexões com indivíduos de todas as esferas da sociedade. No entanto, mesmo assim, o número de pessoas desprovidas do essencial, como alimento em suas mesas, continua a crescer. Sinto-me compelido a fazer mais, a ultrapassar os limites, mesmo quando cada fibra do meu ser protesta. Acredito que a agonia da fome supera, de longe, qualquer desconforto que eu possa sentir ao estender a mão para ajudar.

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